Postagens

DIÁRIO DE UMA PÓS-DOUTORANDA

Querido diário, é madrugada e tenho sido despertada por muitos pesadelos. Te escrevo porque, neste momento, não tenho correspondentes. Você sabe que sempre fui uma escritora de diários, até encontrar, na carta, uma outra da outra da outra, ainda que com-fabulada. Não é que você seja nada ou ninguém. Mas todos sabem que escrever em um diário é como se fosse para si mesma. Sei que você vai compreender meu jogo de palavras. Você lembra daquele corredor silencioso, onde fiz a entrevista do pós-doc? Eu estava em uma selva de pedras, com-correndo a dois processos seletivos, ao mesmo tempo. Sim, eu estava desesperada para me libertar de uma condição profissional opressora, ainda que pudesse entrar em outra. Cheguei a fazer um registro em preto e branco daquele tempo-espaço, mas tal lembrança me causava tanta angústia, que a deletei dos meus arquivos, como uma eterna editora de mim mesma. No entanto, aquela imagem me volta constantemente, porque me observar dentro de

NARRATIVA PARA SYSYPHUS

Imagem
Morgana Poiesis e Isaac Souto. Fotografia: George Neri. Salvador-BA, 2022.   Há um ponto em que me coloco absurdamente distante da realidade para poder, ora contemplá-la, ora refleti-la, ora me refletir, mesmo, nela. É quando não apenas me identifico com minha própria vida, mas também a estranho, ou sou eu mesma esse ser que estranhamente vive e questiona o sentido de viver, quando tudo o que é valioso vem depois da necessidade essencial de sobrevivência. Este filme é um ensaio sobre viver para não apenas sobreviver. Sobre o pensamento através da linguagem, e para além dela. Sobre ser humana e existir enquanto tal, donde a arte, a filosofia, a representação simbólica. Ser livre dentro do capitalismo global seria poder escolher o que dele me convém. A ilusão de estar à sua margem não oferece liberdade de escolha. Estamos prisioneiras do liberalismo econômico, e não vislumbramos saída da mais valia, embora confabulemos economias criativas e culturas colaborativas. Embora elogiemos

PARA AS ESCRITORAS DO MULHERIO DAS LETRAS: CARTA-CONVITE

Imagem
  Leitura da carta no VI Encontro Nacional do Mulherio das Letras, Rio de Janeiro, 2023. VI Encontro Nacional Mulherio das Letras, Rio de Janeiro, 2023. Caras escritoras, venho, por meio destas mal traçadas linhas, abrir meu processo de pesquisa do pós-doutorado em Estudos da Linguagem, na Universidade Federal do Mato Grosso, por ora intitulada Mulherio das Letras: correspondências. Meu primeiro contato com o Mulherio das Letras aconteceu em uma roda de conversas, com as escritoras de Brasília, na programação oficial da 10ª edição da FliPiri - Festa Literária de Pirenópolis, no interior em Goiás, em 2019. Ao encontrar um coletivo brasileiro de mulheres escritoras que o qualificavam como feminista , senti um forte convite a pertencê-lo. Tendo conhecimento do movimento nacional, passei a acompanhá-lo nas redes sociais, e a publicar minhas produções literárias nos grupos do Facebook. Me chamava a atenção o modo colaborativo como o coletivo se organizava, atravé

CARTA PARA DRUMMOND

Imagem
  Querido Drummond Consegui uma licença profissional para te escrever esta carta. Mas gatos não entendem nada de profissionalismo. Deve ser por isso que amo os felinos. Desde que você partiu, meu coração ficou pequenino, do tamanho que você nasceu. Cora, sua mãe, que ainda está entre nós, deu luz à você e ao seu irmãozinho que veio primeiro, mas não sobreviveu. Então você nasceu, eu esperava outros tantos gatinhos, mas foram apenas dois. Me disseram que gatas adolescentes têm pouca ninhada. Cora miava e miava, lambendo seu filhotinho natimorto. Retirei o corpinho dele, enterrei no fundo do quintal, ao lado do pé de babosa. Logo foi a sua vez, que deu certo. Tudo isso aconteceu dentro do meu guarda-roupas, que acabou por se transformar em uma pequena maternidade. Todos os dias pela manhã, quando eu acordava, ia ver se você estava respirando. Você dormia enroscado em si mesmo, estava sempre de olhinhos fechados, mesmo quando acordado, procurando as tetas

CARTA PARA UM GEÓLOGO

E. Venho, finalmente, responder à carta que você me escreveu, como colaboração técnica para a pesquisa do documentário Sysyphus, que gravamos na Gruta da Mangabeira, em Ituaçu-BA, e também na cidade de Salvador-BA. Começaria te agradecendo por sua contribuição tão valiosa, que muito nos ensina, não apenas sobre a formação geológica da Chapada Diamantina, mas também sobre os possíveis diálogos entre a arte e a ciência, em uma dimensão interdisciplinar. Em um segundo momento, justifico minha demora ao respondê-la, não apenas devido aos contratempos que tive neste último ano, mas, sobretudo, pela própria natureza das cartas , que demandam mais profundidade, e, portanto, mais tempo de maturação, ao passo do que temos experimentado com o imediatismo das redes sociais. Confesso que, me deparar com um conteúdo tão específico da geologia, também me intimidou, de uma certa maneira. Senti na pele como é receber uma carta tão contundente sobre determinado conteúdo, como

CARTA DE UMA MULHER ELEFANTA

Imagem
  Zé, o melhor desta carta que te respondemos, é poder assiná-la como Mulher Elefanta, para quem você escreveu, um devir-animal-em-nós. Lembramos (com nossas memórias de elefantas) daquelas breves palavras que trocamos, em despedida, quando você disse que chegara depois mas captara a performance que havíamos feito, através dos vestígios. Tão logo fomos surpreendidas com a sua carta. Aquela foi a última performance que desempenhamos como artística, antes de deixar a capital de Goiás. Era preciso abandonar o peso da memória que carregamos no corpo, deixar apenas os rastros da nossa passagem. Tudo mais seriam acessórios, bagagens desnecessárias. Gostaríamos de poder voar, fluir ou queimar de uma vez por todas, mas havia um excesso de terra, onde os territórios definem as paisagens, e todos cobram os seus tributos de sangue . Poderíamos dizer que, por fim, voltaremos ao pó, e então um silêncio absoluto. Mas retomemos à performance, propriamente dita, embora ela queira nos

I CARTA A LA ABUELA

Vó, há tempos espero para te escrever esta carta. Tudo o que parece ser demasiadamente especial para o ritmo do mundo me exige um silêncio maior, ele mesmo produzido no contratempo necessário. Então, hoje faz sol, chuva, arco-íris e lua cheia, ademais atravesso meu rio vermelho, a vida-morte-vida que me faz renascer a cada ciclo, e me ensina a deixar morrer para fluir a energia vital. A senhora me apareceu em sonho, certa noite É verdade que eu já evocava a sua presença, desde quando me encontrei ferida na clareira de uma floresta, onde te via à minha volta, junto com índias, caboclas, ciganas e curandeiras, em meio aos lapsos de minha lucidez. Desde que a senhora se foi, apenas a reconstituição da sua presença me conforta. Diria que te sinto mais presente agora, quando não há uma realidade geográfica entre nós duas, superada, portanto, essa materialidade implacável . Como se antes a senhora estivesse sempre longe, no seu lugar, e agora estivesse sempre p